segunda-feira, 5 de maio de 2008

Condenados do Sistema: Pobreza Urbana em Salvador-BA

por: Antonio Mateus de Carvalho Soares

informe: http://lattes.cnpq.br/5592333054837843

site:http://www.contatosociologico.crh.ufba.br/




A metrópole soteropolitana cresce a cada instante – o percentual de urbanização avança de 96,6% em 1991, para 98,4% em 2000[1]. Em concomitância a este processo, observa-se a consolidação de um complexo quadro de periferização e empobrecimento urbano. Salvador, terceiro aglomerado populacional do país, é periferia do sistema capitalista no Brasil e possui uma urbanização, marcada por um “padrão periférico[2]” obediente às lógicas do capital e às investidas das forças imobiliárias. O adjetivo periférico aqui empregado se legitima não apenas por Salvador se localizar no nordeste brasileiro, fora do eixo centro-sul, ou por não possuir um complexo econômico-industrial como São Paulo e Rio de Janeiro, mas por guardar expressivos índices de pobreza que se materializam em seu tecido urbano e na própria fisionomia de seus habitantes:



(·) Entre as 12 principais capitais do Brasil, Salvador ocupa a 8ª. posição em IDH [Índice de Desenvolvimento Humanos]. Nas análises sobre o ICV [Índice de Condições de vida], a oscilação da variável trabalho entre as décadas de 80 e 90, foi de 0,592 para 0,452, em decorrência do aumento do desemprego de 5,5% para 16,3% e da diminuição do número de empregados com carteira assinada.

(.) O salário médio na capital baiana diminuiu de R$ 322,00 para R$ 252,88, elevando o índice de pobreza de 0,06 para 0,1. O número de pobres na cidade aumentou de 26,9% para 33,6% ( Pesquisa do PNUD/ONU – 2004).

(·) Em 2004, o PIB baiano cresceu 9,9% enquanto, para o Brasil, essa taxa foi de 4,9%.No primeiro semestre de 2005, o PIB da Bahia imprimiu bons resultados, registrando uma expansão de 3,6% do PIB em relação ao mesmo período do ano anterior. O Estado da Bahia participa, com aproximadamente 56% das exportações da Região Nordeste. [Mensagem, no. 83/2005. Diário Oficial do Estado, em 15 e 16.10.2005][3].

(·) A população de Salvador é de 2.672.360 hab., o déficit habitacional é de 144. 767 e com 67.443 moradias em áreas de favela ( IBGE, 2005).Em 2003, Salvador constituía a terceira maior aglomeração de pobreza metropolitana do país , atrás apenas de Recife ( 31,8%) e de Fortaleza ( 36,0 %), conforme dados da PNAD.

(· ) Os números são contundentes: em Salvador, há 3.809 moradores de rua; faltam casas para cerca de 100 mil famílias, enquanto em todo o Estado, 39.370 mutuários estão inadimplentes com o sistema financiador de habitação. (Jornal A Tarde, Salvador-Ba. 15/01/2006).

O trato com dados referentes à pobreza guarda em si um complexo cruzamento de variáveis que, quando mal interpretadas, podem gerar análises poucos precisas. Assim, para as necessidades deste estudo, daremos maior importância para tentativa de constituição de uma inteligibilidade para a pobreza enquanto fenômeno social e como ela se manifesta no tecido urbano de Salvador. É uma obviedade necessária se afirmar que Salvador guarda um dos maiores índices de pobreza e desigualdade social do país. Deste modo, dentro da amplitude dimensional que o fenômeno da pobreza urbana pode tomar, focalizaremos a pobreza de Salvador em suas interfaces com a segregação, periferização e exclusão social[4]. Dada a diversidade de figurações da pobreza, não é objetivo deste estudo o aprofundamento das formas de mensurar, quantificar ou classifica - lá, mas percebê-la no seu modo particular de espacialização no tecido urbano de Salvador[5]. Como fenômeno social que se manifesta nas periferias e subúrbios dos grandes centros urbanos brasileiros, a pobreza e o pobre configuram-se como um produto de um poderoso esquema econômico de acumulação do capital.

A pobreza de Salvador e sua trajetória histórica de acúmulo de carências foi tema de discurso que cercou os movimentos sociais; foi justificativa para a busca de financiamentos internacionais; foi objeto de intervenção nas falaciosas propostas políticas, e ainda, campo especial de pesquisa do discurso sociológico e/ou técnico. A pobreza e seus índices se transformaram nas últimas décadas em palavras legitimadoras da necessidade de reafirmação e de luta pelos direitos sociais, pela igualdade e justiça.

Segundo Serge Paugam (2003, p. 64), “nas sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que carece de bens materiais; ela corresponde, igualmente, a um status social específico, inferior e desvalorizado”. O conceito de indivíduo pobre está associado ao de “fracassado socialmente” (individualização e culpabilização da pobreza), de excluído por não ter acesso em termos espaciais e temporais à cidade e seus benefícios, às mercadorias e serviços, à tecnologia, ao conhecimento etc. A questão da pobreza remete também à exclusão urbana e à construção cotidiana de um desequilíbrio social que se desdobra em privação de renda estável, desclassificação profissional e social, na falta de acesso aos serviços básicos etc. A pobreza em seu quadro de “despossessões” não possui impacto apenas econômico, mas também subjetivo, social e político.

A pobreza como terminologia que indica uma situação social vai instituindo seu significado em paralelo à conformação do direito à cidadania. Sua discussão supõe igualmente a dimensão da cidadania e a luta pelo acesso aos direitos básicos. Para Anete Ivo e Ilse Scherer– Warren (2004, p. 13-15) a questão da pobreza como efeito da desigualdade econômica e social, aparece, então, como questão política, já que interfere sobre as condições da justiça redistributiva. Esta afirmação nos leva a montar uma equação reflexiva entre: reprodução da pobreza ↔ produção da exclusão ↔ cidadania ↔ justiça social.

O Estado capturado é utilizado como o próprio instrumento para a reprodução e gestão da pobreza, situação que aumenta a exclusão e gera uma desqualificação social, que se manifestou nas cidades brasileiras com força implacável no processo de urbanização, criando um conjunto de precariedades que submetem as populações de baixa renda a um cenário de segregação e “despossessões” que aniquilam a cidadania e o acesso aos direitos básicos de sobrevivência: saúde, educação, moradia, emprego etc. Conforme Carvalho e Codes (2006), a pobreza e a precariedade das condições de subsistência são determinadas pelas condições de trabalho e renda; a pobreza não pode ser analisada de forma dissociada de fatores como o perfil educacional e os processos de segregação socioespacial e segmentação urbana.

A pobreza e os pobres passam a ser o foco da atenção de projetos sociais como grupo experimental para os dispositivos de poder[6], e como mão-de-obra barata e descartável a ser utilizada no processo de produção, reprodução e reestruturação do capital em suas modalidades de financeirização. A pobreza estrutural de nossos dias é observada, medida, estudada, dimensionada, avaliada, gerida, administrada, mas não se vislumbra a sua erradicação. A pobreza contemporânea, sob os ditames de um capital financeirizado e “molecular-digital”[7], parece se transformar em uma situação mantida pela lógica neoliberal, que coisifica e monetariza a vida. Desta forma, as reflexões sobre a pobreza devem se pautar em questionamentos: o que é a pobreza? para que servem os pobres? o que fazer dos pobres? o que é direito? o que é cidadania?

O pobre é aquele que tem de provar o tempo todo, se fazer ver e reconhecer a si próprio e à sociedade, a sua própria respeitabilidade num mundo em que os salários insuficientes, a moradia precária, o subemprego e o desemprego periódico solapam suas condições de possibilidade. Nesse caso, seria possível dizer que a condição de pobreza se traduz na experiência de uma liminaridade real ou virtual entre a ordem e a desordem, experiência feita no jogo ambivalente de identificações e diferenciações, elaborada entre a percepção de uma condição comum de privação que dilui perigosamente as fronteiras entre uns e outros e a construção de um universo moral no qual homens e mulheres se reconhecem como sujeitos capazes de lidar com os azares da vida e de se distanciar, se diferenciar, dos que foram pegos pela maldição da pobreza. É nos sinais que trazem dessa liminaridade que as circunstâncias de vida são problematizadas, circunscrevendo-se o modo como identidades são construídas e reconhecidas. (TELLES, 1992, pp 120-121).

O pobre é figurado como um “despossuido” de direitos e de razões, faz parte de uma parcela majoritária da população que tem seu cotidiano marcado por diversas carências e privações. O pobre é vítima da pobreza e da falta de satisfação das necessidades humanas básicas – a pobreza de forma endêmica e naturalizada é uma violação dos direitos humanos. A pobreza, como desrespeito a direitos econômicos e sociais básicos de grupos e indivíduos, foi se constituindo como uma violação de direitos humanos; a pobreza e a marginalização das populações criam sérios obstáculos à realização dos direitos políticos e civis, na medida em que as privações enfraquecem a manutenção da vida social e dificultam a participação política.


Notas:.

[1] Cf. FERNANDES, Claudia Monteiro (2006). Condições Demográficas. In: CARVALHO, Ináia M..M & CORSO, Gilberto Pereira (Org). Como anda Salvador ? EDUFBA, Salvador, 2006, 185 p.
[2] Cf. (CARVALHO & PINHO.1996, p.36) [...] a lógica do capital caminha atrelada aos interesses imobiliários estimulando a conformação do “padrão periférico” da urbanização, provocando a expansão desigual do tecido urbano.
[3] Declarações do Governo do Estado sobre o aumento do PIB e qualidade de vida parecem confrontar os dados do PNUD/ONU em relação ao aumento da pobreza. Estas declarações podem indicar que a elevação do PIB estadual não guarda nenhuma relação com a distribuição de renda e/ou com a diminuição da pobreza na Bahia.
[4] A relação entre Estado como mantenedor da relação exclusão-inclusiva, assim como o próprio conceito de exclusão associada ao capital neo-liberal será realizada no 4ª. capitulo deste trabalho. [5] Cf. (CODES, 2004, p. 129/130) As tentativas de mensuração da pobreza baseiam-se na utilização de dados estatísticos, uma vez que a análise quantitativa é capaz de oferecer uma visão ampla e sistêmica dessa questão social, prestando-se bem à idéia de servir de orientação para o desenvolvimento de ações anti-pobreza. [...] A mensuração da pobreza predominantes no campo das Ciências Sociais, baseadas em dados estatísticos, são pautadas em uma análise da satisfação das Necessidades Básicas e o estabelecimento das Linhas de Pobreza. [...] (CODES apud SALAMA;DESTREMAU, 2004) Medir a pobreza significa “perceber e contar os pobres, e tentar avaliar a natureza e a gravidade do problema que eles colocam, no que refere a critérios julgados pertinentes.
[6] Cf. Michel Focault (2003) O dispositivo de poder, conforme, gerencia a vida e a coloca a disposição de um poder maior que se explicita através de sofisticadas tecnologias de governo, tendo como uma das conseqüências uma metamorfose da economia social da filantropia em direção à atual administração massiva da pobreza ou gestão da exclusão social.
[7] Cf. SANTOS, Laymert, G. dos. In: Relatório Final do Projeto Temático Fapesp (2003-2004): Cidadania e Democracia: o pensamento nas rupturas da politica. Subprojeto 9 : Biotecnologia, biodiversidade : passagem para o molecular global. CENEDIC, FFLCH/USP, São Paulo, 2005.

Nenhum comentário: