segunda-feira, 5 de maio de 2008

Indicação de Leitura: Educação para uma nova sociedade


Autoria:. Gey Espinheira
Informe:. http://lattes.cnpq.br/2985787952341295

Pensar a educação é ir além das técnicas e mesmo das ciências. Já estou cansado – e acredito que muita gente mais – de pensar a educação como razão instrumental e atrelá-la ao mercado de trabalho, como se o destino do ser humano fosse o de transformar-se em trabalhador especializado, ou um faz-de-tudo, pau-para-toda-obra, ou ainda um generalista qualificado.
Nos últimos poucos anos as mudanças que se processaram na sociedade foram tão significativas que podemos dizer que ultrapassamos a linha da tradição e no inserimos no torvelinho da sociedade de mudanças e de descontinuidades que nos ultrapassam infinitamente, para usar aqui uma expressão dos paradoxos de Latour (1994).
Saímos, por exemplo, do paradigma da sociedade de economia para o de sociedade de tecnologia. O reconhecimento de que não foi o trabalho o responsável pelo aumento da produtividade e sim a tecnologia, o próprio trabalho passa a ser questionado como o lugar e o destino do ser humano, embora não se saiba o que fazer com este ser em estado de não-trabalho, como um ser improdutivo, intoleravelmente dependente.
Decididamente a educação vinculou-se ao trabalho e este se constituiu na melhor forma de controle social e de demarcação do espaço humano nas sociedades ocidentais. Freud, em seu Mal-estar da civilização, reconhece este enredo no qual os seres humanos foram levados a representar, e nos diz que “nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão fortemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana”. (1997 p. 29). Para Marx, o trabalho coletivo constrói a humanidade e para ser exercido exige conhecimento dos usos dos instrumentos, da tecnologia, e a sua forma de produzir, portanto, produz também a organização da sociedade e tudo mais que a caracteriza.
A educação é o meio para conhecer e agir na sociedade do trabalho; mas, estamos ainda na sociedade do trabalho? Já não é hora de pensar a educação para além do trabalho? Não terá o trabalho mudado? A estas questões não quero responder recorrendo à utopia da sociedade do ócio, mas a que se expande em modos de fazer, criar e inventar que, como na letra da música de Noel Rosa e Vadico: “fazer samba é um privilégio/ ninguém aprende samba no colégio”.
Não desejo entrar em considerações, portanto, sobre a sociedade do ócio ou qualquer coisa que o valha neste sentido, apenas dizer que a educação instrumental não encontrará campos largos de trabalho e emprego como se acreditava, ou como se alardeia hoje com a superoferta de cursos de toda natureza. Bourdieu (1996, p. 38 ss.) nos alertava que a educação, para além do conhecimento, concede diplomas, titula as pessoas, diferenciando-as socialmente e capacitando a acessos que outros, sem a titulação, estão impedidos. A educação joga um jogo social importante na distinção entre as pessoas e grupos sociais “pelo direito de usar um nome, um título; tem, portanto, outras funções para além do conhecer”.
O ser humano é um animal sem especialização como tal, por isso mesmo sua grande tarefa é a de constituir-se humanamente, isto é, de tornar-se o que não o é pela própria natureza; transcender-se em sua imanência. O processo para chegar a este objetivo é, inquestionavelmente, o educacional. Ninguém se humaniza sozinho, nos diz Berger (1972, p.114) “Uma pessoa não pode ser humana sozinha e, aparentemente, não pode apegar-se a qualquer identidade sem o amparo da sociedade”. Precisamos da sociedade para nos respaldar, e poderíamos dizer: precisamos da educação para nos fazer gente.
Quem somos nós no conjunto da sociedade? A que nos destinamos? Roland Corbisier (1978, p.59) citando Ortega e Gasset, nos diz que somos um projeto, que nos realizamos como projeto, já que não estamos acabados e programados.
Quando falamos em educação estamos pronunciando uma palavra enigmática, pois todos a entendem, mas nem só não sabemos do que estamos falando, nem os que nos ouvem sabem do que falamos. Rancière (1996) diria que este é um exemplo puro de desentendimento. E estamos nos desentendendo há muito tempo.
Quando falamos em paradoxo estamos nos referindo a algo que se apresenta como contrário, ou uma contraposição àquilo que julgamos ser o esperado. Assim, quando o professor se refere ao valor social da educação e, ao mesmo tempo, ao seu desprestígio no mercado de trabalho, está diante de um paradoxo e, certamente, também de um dilema e de um desafio, mas ainda em face de uma obviedade: o seu valor no mercado da educação de massa.
Por dilema podemos considerar a necessidade de uma decisão diante de alternativas que são opostas e cada uma delas insatisfatória, mas que é preciso chegar a uma conclusão ou a uma saída.
Pensemos, portanto, em paradoxos e depois nos dilemas que eles nos propõem:
1. O valor social da educação não é correspondido com a mesma ênfase nas relações de trabalho no campo educacional;
2. A baixa-estima do professor ao confessar seu baixo rendimento e suas precárias condições de trabalho expressa a sua fragilidade no âmbito do próprio campo educacional;
3. Ao comparar-se em dedicação e estudos a outros profissionais que obtêm sucesso sem o requerimento do empenho intelectual (artista, jogador de futebol, piloto de fórmula 1 etc.) põe em jogo a desvalorização social da educação para os próprios estudantes que são incentivados a “estudar para vencer na vida”;
4. A padronização da educação de massa é também a padronização (homogeneização) social, enquanto que o discurso da educação é o da distinção social, da instalação da competência para o desempenho competitivo na sociedade;
5. O predomínio da “razão instrumental” no processo educacional tende a anular a atenção à subjetividade do sujeito, tornando-o um ser indistinto diante de uma missão a que está obrigado a realizar sem ter a devida consciência do seu sentido e do seu significado;
6. A educação abstraída de significado torna-se mais um fardo do que algo reconhecido pelo estudante, também abs-traído, o ex-traido, para a realização de seu próprio projeto de formação social, de constituição de um ser repleto de possibilidades;
7. A má qualidade da educação leva ao desencanto e a freqüência à escola torna-se apenas uma obrigação social de “estar na escola”, o que descompromete o estudante com as relações necessárias decorrentes dos papéis em jogo;
8. Sobrecarregado e mal remunerado, o professor se desencanta e amesquinha seu próprio papel social;
9. O autoritarismo e a hipocrisia do campo educacional estabelece um chão de relações falsas, moralistas, que se torna movediço para todos os que se envolvem nesse campo;
10. A educação, embora absolutamente necessária, já não é condição – para a maioria – de ascensão social, garantia de trabalho, emprego e renda, nem de distinção social.

Diante desses paradoxos – que não se esgotam aqui – é preciso pensar nos dilemas que eles propõem e nos desafios que professores e estudantes têm pela frente para enfrentá-los se quiserem mudar o rumo da educação na proposição de uma nova sociedade. O principal dilema diz respeito ao fato de que só uma nova sociedade pode propor uma nova educação, e que a educação é o mecanismo, como processo, de construção dessa nova sociedade.

Nenhum comentário: