segunda-feira, 5 de maio de 2008

Olhar Metodológico - Sociólogo Gey Espinheira


Excertos do Módulo "A ficção do Real" (2007)

Autoria:. Gey Espinheira

Informes:. http://lattes.cnpq.br/2985787952341295

Uma indagação que se torna, por si mesma, uma pergunta absoluta no sentido sartreano. Por que escrever? Não se responde a algo que ao questionar propõe uma afirmação, como se estivesse a dizer: por que não escrever? Uma naturalização de algo que, por ser uma das dimensões humanas, se expressa espontaneamente, ou autenticamente, para usar um vocabulário caro ao existencialismo.
Orham Pamuk, que recebeu o prêmio Nobel de literatura de 2006, fala sobre por que e para quem escrever. Ele foi acusado de receber o prêmio como uma estratégia européia de contentar um país do Oriente, islamizado, prestes a fazer parte da União Européia, a Turquia. Pamuk toca em um tema tabu: o massacre de armênios e curdos em seu país e traz à tona a questão das diferenças étnicas e da intolerância. Então, por que escrever? Para quem escrever? Responde Pamuk (Folha de São Paulo, Ilustrada, E3, edição 14 de outubro 2006):
Os escritores escrevem para um leitor ideal, para as pessoas que amam, para eles mesmos ou para ninguém... Os escritores de hoje também escrevem para aqueles que os lêem... Não existe um leitor ideal, livre de toda a estreiteza mental e de todas as proibições sociais ou mitos nacionais, assim como não existe o romancista ideal. Mas a busca de um escritor pelo leitor ideal começa quando o romancista imagina que ele exista e passa a escrever livros o tendo em mente.

O ato de escrever é engajado ou desengajado, dependendo de que escrita se trate; há uma razão para se escrever quando o que se escreve é poesia; assim como há razões quando se trata de prosa; e em ambos os casos uma diferença é estabelecida, porque as linguagens não são as mesmas, ainda que a língua o seja, assim como os instrumentos, as palavras, também são as mesmas, mas funcionam diferentemente na prosa e na poesia e manejo de um estilo e o de outro depende também da razão existencial do que se faz.
O corpo estético estende todos os seus sentidos para captar o estar-no mundo e o ser-no-mundo e anunciar a sua forma de ver-o-mundo. A primeira operação é, portanto, de entendimento do que dever ser transmitido, a sua razão de ser.
Segundo Sartre, a poesia e a prosa se diferenciam no uso das palavras, já que na prosa as palavras são signos, enquanto que na poesia elas têm um outro significado, aqui são transparentes, enquanto que na prosa elas traduzem a realidade das coisas que representam, que nomeiam. Escrever sobre o real é aproximar-se ao máximo da realidade e representá-la através dos signos, das palavras, formulando o discurso que desvela algo. Para Heidegger (2002), o desencobrimento, levantar o véu que vela. Para Sartre, o desvelamento de algo que está oculto e que deve ser mostrado. O mesmo para Bachelard (1988), por trás das aparências algo oculto, uma latência que revela algo que propõe outros significados e relações para além daqueles que a máscara esconde e simultaneamente revela.
Pensemos em Aldous Huxley (1986, p 1), quando nos fala na arte e na realidade, mostrando que a realidade não faz sentido, não tem estilo, diferentemente da arte, mais especificamente da literatura. A realidade é o campo da prosa; a transcendência o da poesia. Se há alguma imbricação nos estilos, não pode haver predomínio de um sobre o outro, sob pena de não ser nem uma coisa nem outra.
Enquanto que a “existência” é, como nos ensinou Aldous Huxley, “sempre um infernal emaranhado de coisas”:

A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu aspecto bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas, e cada uma dessas coisas é simultaneamente Thurber e Miguel Ângelo, é ao mesmo tempo Mickey Spillane e Thomas Kempis. O critério da realidade é a sua congruência intrínseca.


Seguindo os passos de Heidegger (2003, p. 12), em seu estudo sobre Tralk, a poética se explicita a nos evocar e convocar para o sentido do mundo em toda sua expressão:
Alguns viandantes da errância
chegam até a porta por veredas escuras.
Da seiva fria da terra
Surge dourada a árvore dos dons.

Vamos ver certas diferenças entre a arte e a realidade. Para Sartre (1989, p. 40), “a obra de arte não tem uma finalidade; nisso estamos de acordo com Kant. Mas é porque ela é uma finalidade em si mesma...” “Kant crê que primeiro a obra existe de fato e só depois é vista. No entanto, a obra só existe quando a vemos; ela é primeiramente puro apelo, pura exigência de existir”.
A liberdade de escrever está ligada ao reconhecimento da liberdade dos outros. Sartre (ibid., p. 43) nos diz que “quando mais experimentamos a nossa liberdade mais reconhecemos a do outro; quanto mais ele exige de nós, mais exigimos dele”. E, por fim, se conclui que a arte é uma “cerimônia do dom e só o dom opera uma metamorfose” A generosidade, essa confiança de si, esse se dar à liberdade do outro, “assim a minha liberdade, ao se manifestar, desvenda a liberdade do outro” (p. 44).
Diante da produção literária, e artística em geral poderíamos levantar a questão da pulsão humana pela criação. Talvez respondêssemos com a simplicidade da resposta: somos humanos; e vamos mais adiante pensar na pergunta que também poderia ser inquietante: por que escrever?
O corpo estético estende todos os seus sentidos para captar o estar-no mundo e o ser-no-mundo e anunciar a sua forma de ver-o-mundo. A primeira operação é, portanto, de entendimento do que dever ser transmitido, a sua razão de ser. Eco nos dirá, mais adiante, o quanto o leitor é importante no diálogo com a obra; o quanto ele pode ser uma leitor empírico ou um leitor modelo. Os nossos sentidos convocados pela literatura, nos comunicam à razão e, então, sentimos a completude do que estamos fazendo quando lemos. Autores como Eco, Manguel e Calvino, passando por Moreiras (2001) e Morse (1990), falam da literatura com intimidade, como Antonio Cândido, sem, no entanto, essa passagem direta à realidade da vida.
Aldous Huxley, em diversos momentos em sua obra literária faz referência ao mundo ordenado da ficção, conquanto aquele da existência das pessoas “reais” na vida cotidiana apareceria como fragmentado. Diz ele em O gênio e a deusa: “A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu aspecto bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas”

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