segunda-feira, 5 de maio de 2008

Condenados do Sistema: Pobreza Urbana em Salvador-BA

por: Antonio Mateus de Carvalho Soares

informe: http://lattes.cnpq.br/5592333054837843

site:http://www.contatosociologico.crh.ufba.br/




A metrópole soteropolitana cresce a cada instante – o percentual de urbanização avança de 96,6% em 1991, para 98,4% em 2000[1]. Em concomitância a este processo, observa-se a consolidação de um complexo quadro de periferização e empobrecimento urbano. Salvador, terceiro aglomerado populacional do país, é periferia do sistema capitalista no Brasil e possui uma urbanização, marcada por um “padrão periférico[2]” obediente às lógicas do capital e às investidas das forças imobiliárias. O adjetivo periférico aqui empregado se legitima não apenas por Salvador se localizar no nordeste brasileiro, fora do eixo centro-sul, ou por não possuir um complexo econômico-industrial como São Paulo e Rio de Janeiro, mas por guardar expressivos índices de pobreza que se materializam em seu tecido urbano e na própria fisionomia de seus habitantes:



(·) Entre as 12 principais capitais do Brasil, Salvador ocupa a 8ª. posição em IDH [Índice de Desenvolvimento Humanos]. Nas análises sobre o ICV [Índice de Condições de vida], a oscilação da variável trabalho entre as décadas de 80 e 90, foi de 0,592 para 0,452, em decorrência do aumento do desemprego de 5,5% para 16,3% e da diminuição do número de empregados com carteira assinada.

(.) O salário médio na capital baiana diminuiu de R$ 322,00 para R$ 252,88, elevando o índice de pobreza de 0,06 para 0,1. O número de pobres na cidade aumentou de 26,9% para 33,6% ( Pesquisa do PNUD/ONU – 2004).

(·) Em 2004, o PIB baiano cresceu 9,9% enquanto, para o Brasil, essa taxa foi de 4,9%.No primeiro semestre de 2005, o PIB da Bahia imprimiu bons resultados, registrando uma expansão de 3,6% do PIB em relação ao mesmo período do ano anterior. O Estado da Bahia participa, com aproximadamente 56% das exportações da Região Nordeste. [Mensagem, no. 83/2005. Diário Oficial do Estado, em 15 e 16.10.2005][3].

(·) A população de Salvador é de 2.672.360 hab., o déficit habitacional é de 144. 767 e com 67.443 moradias em áreas de favela ( IBGE, 2005).Em 2003, Salvador constituía a terceira maior aglomeração de pobreza metropolitana do país , atrás apenas de Recife ( 31,8%) e de Fortaleza ( 36,0 %), conforme dados da PNAD.

(· ) Os números são contundentes: em Salvador, há 3.809 moradores de rua; faltam casas para cerca de 100 mil famílias, enquanto em todo o Estado, 39.370 mutuários estão inadimplentes com o sistema financiador de habitação. (Jornal A Tarde, Salvador-Ba. 15/01/2006).

O trato com dados referentes à pobreza guarda em si um complexo cruzamento de variáveis que, quando mal interpretadas, podem gerar análises poucos precisas. Assim, para as necessidades deste estudo, daremos maior importância para tentativa de constituição de uma inteligibilidade para a pobreza enquanto fenômeno social e como ela se manifesta no tecido urbano de Salvador. É uma obviedade necessária se afirmar que Salvador guarda um dos maiores índices de pobreza e desigualdade social do país. Deste modo, dentro da amplitude dimensional que o fenômeno da pobreza urbana pode tomar, focalizaremos a pobreza de Salvador em suas interfaces com a segregação, periferização e exclusão social[4]. Dada a diversidade de figurações da pobreza, não é objetivo deste estudo o aprofundamento das formas de mensurar, quantificar ou classifica - lá, mas percebê-la no seu modo particular de espacialização no tecido urbano de Salvador[5]. Como fenômeno social que se manifesta nas periferias e subúrbios dos grandes centros urbanos brasileiros, a pobreza e o pobre configuram-se como um produto de um poderoso esquema econômico de acumulação do capital.

A pobreza de Salvador e sua trajetória histórica de acúmulo de carências foi tema de discurso que cercou os movimentos sociais; foi justificativa para a busca de financiamentos internacionais; foi objeto de intervenção nas falaciosas propostas políticas, e ainda, campo especial de pesquisa do discurso sociológico e/ou técnico. A pobreza e seus índices se transformaram nas últimas décadas em palavras legitimadoras da necessidade de reafirmação e de luta pelos direitos sociais, pela igualdade e justiça.

Segundo Serge Paugam (2003, p. 64), “nas sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que carece de bens materiais; ela corresponde, igualmente, a um status social específico, inferior e desvalorizado”. O conceito de indivíduo pobre está associado ao de “fracassado socialmente” (individualização e culpabilização da pobreza), de excluído por não ter acesso em termos espaciais e temporais à cidade e seus benefícios, às mercadorias e serviços, à tecnologia, ao conhecimento etc. A questão da pobreza remete também à exclusão urbana e à construção cotidiana de um desequilíbrio social que se desdobra em privação de renda estável, desclassificação profissional e social, na falta de acesso aos serviços básicos etc. A pobreza em seu quadro de “despossessões” não possui impacto apenas econômico, mas também subjetivo, social e político.

A pobreza como terminologia que indica uma situação social vai instituindo seu significado em paralelo à conformação do direito à cidadania. Sua discussão supõe igualmente a dimensão da cidadania e a luta pelo acesso aos direitos básicos. Para Anete Ivo e Ilse Scherer– Warren (2004, p. 13-15) a questão da pobreza como efeito da desigualdade econômica e social, aparece, então, como questão política, já que interfere sobre as condições da justiça redistributiva. Esta afirmação nos leva a montar uma equação reflexiva entre: reprodução da pobreza ↔ produção da exclusão ↔ cidadania ↔ justiça social.

O Estado capturado é utilizado como o próprio instrumento para a reprodução e gestão da pobreza, situação que aumenta a exclusão e gera uma desqualificação social, que se manifestou nas cidades brasileiras com força implacável no processo de urbanização, criando um conjunto de precariedades que submetem as populações de baixa renda a um cenário de segregação e “despossessões” que aniquilam a cidadania e o acesso aos direitos básicos de sobrevivência: saúde, educação, moradia, emprego etc. Conforme Carvalho e Codes (2006), a pobreza e a precariedade das condições de subsistência são determinadas pelas condições de trabalho e renda; a pobreza não pode ser analisada de forma dissociada de fatores como o perfil educacional e os processos de segregação socioespacial e segmentação urbana.

A pobreza e os pobres passam a ser o foco da atenção de projetos sociais como grupo experimental para os dispositivos de poder[6], e como mão-de-obra barata e descartável a ser utilizada no processo de produção, reprodução e reestruturação do capital em suas modalidades de financeirização. A pobreza estrutural de nossos dias é observada, medida, estudada, dimensionada, avaliada, gerida, administrada, mas não se vislumbra a sua erradicação. A pobreza contemporânea, sob os ditames de um capital financeirizado e “molecular-digital”[7], parece se transformar em uma situação mantida pela lógica neoliberal, que coisifica e monetariza a vida. Desta forma, as reflexões sobre a pobreza devem se pautar em questionamentos: o que é a pobreza? para que servem os pobres? o que fazer dos pobres? o que é direito? o que é cidadania?

O pobre é aquele que tem de provar o tempo todo, se fazer ver e reconhecer a si próprio e à sociedade, a sua própria respeitabilidade num mundo em que os salários insuficientes, a moradia precária, o subemprego e o desemprego periódico solapam suas condições de possibilidade. Nesse caso, seria possível dizer que a condição de pobreza se traduz na experiência de uma liminaridade real ou virtual entre a ordem e a desordem, experiência feita no jogo ambivalente de identificações e diferenciações, elaborada entre a percepção de uma condição comum de privação que dilui perigosamente as fronteiras entre uns e outros e a construção de um universo moral no qual homens e mulheres se reconhecem como sujeitos capazes de lidar com os azares da vida e de se distanciar, se diferenciar, dos que foram pegos pela maldição da pobreza. É nos sinais que trazem dessa liminaridade que as circunstâncias de vida são problematizadas, circunscrevendo-se o modo como identidades são construídas e reconhecidas. (TELLES, 1992, pp 120-121).

O pobre é figurado como um “despossuido” de direitos e de razões, faz parte de uma parcela majoritária da população que tem seu cotidiano marcado por diversas carências e privações. O pobre é vítima da pobreza e da falta de satisfação das necessidades humanas básicas – a pobreza de forma endêmica e naturalizada é uma violação dos direitos humanos. A pobreza, como desrespeito a direitos econômicos e sociais básicos de grupos e indivíduos, foi se constituindo como uma violação de direitos humanos; a pobreza e a marginalização das populações criam sérios obstáculos à realização dos direitos políticos e civis, na medida em que as privações enfraquecem a manutenção da vida social e dificultam a participação política.


Notas:.

[1] Cf. FERNANDES, Claudia Monteiro (2006). Condições Demográficas. In: CARVALHO, Ináia M..M & CORSO, Gilberto Pereira (Org). Como anda Salvador ? EDUFBA, Salvador, 2006, 185 p.
[2] Cf. (CARVALHO & PINHO.1996, p.36) [...] a lógica do capital caminha atrelada aos interesses imobiliários estimulando a conformação do “padrão periférico” da urbanização, provocando a expansão desigual do tecido urbano.
[3] Declarações do Governo do Estado sobre o aumento do PIB e qualidade de vida parecem confrontar os dados do PNUD/ONU em relação ao aumento da pobreza. Estas declarações podem indicar que a elevação do PIB estadual não guarda nenhuma relação com a distribuição de renda e/ou com a diminuição da pobreza na Bahia.
[4] A relação entre Estado como mantenedor da relação exclusão-inclusiva, assim como o próprio conceito de exclusão associada ao capital neo-liberal será realizada no 4ª. capitulo deste trabalho. [5] Cf. (CODES, 2004, p. 129/130) As tentativas de mensuração da pobreza baseiam-se na utilização de dados estatísticos, uma vez que a análise quantitativa é capaz de oferecer uma visão ampla e sistêmica dessa questão social, prestando-se bem à idéia de servir de orientação para o desenvolvimento de ações anti-pobreza. [...] A mensuração da pobreza predominantes no campo das Ciências Sociais, baseadas em dados estatísticos, são pautadas em uma análise da satisfação das Necessidades Básicas e o estabelecimento das Linhas de Pobreza. [...] (CODES apud SALAMA;DESTREMAU, 2004) Medir a pobreza significa “perceber e contar os pobres, e tentar avaliar a natureza e a gravidade do problema que eles colocam, no que refere a critérios julgados pertinentes.
[6] Cf. Michel Focault (2003) O dispositivo de poder, conforme, gerencia a vida e a coloca a disposição de um poder maior que se explicita através de sofisticadas tecnologias de governo, tendo como uma das conseqüências uma metamorfose da economia social da filantropia em direção à atual administração massiva da pobreza ou gestão da exclusão social.
[7] Cf. SANTOS, Laymert, G. dos. In: Relatório Final do Projeto Temático Fapesp (2003-2004): Cidadania e Democracia: o pensamento nas rupturas da politica. Subprojeto 9 : Biotecnologia, biodiversidade : passagem para o molecular global. CENEDIC, FFLCH/USP, São Paulo, 2005.

Olhar Metodológico - Sociólogo Gey Espinheira


Excertos do Módulo "A ficção do Real" (2007)

Autoria:. Gey Espinheira

Informes:. http://lattes.cnpq.br/2985787952341295

Uma indagação que se torna, por si mesma, uma pergunta absoluta no sentido sartreano. Por que escrever? Não se responde a algo que ao questionar propõe uma afirmação, como se estivesse a dizer: por que não escrever? Uma naturalização de algo que, por ser uma das dimensões humanas, se expressa espontaneamente, ou autenticamente, para usar um vocabulário caro ao existencialismo.
Orham Pamuk, que recebeu o prêmio Nobel de literatura de 2006, fala sobre por que e para quem escrever. Ele foi acusado de receber o prêmio como uma estratégia européia de contentar um país do Oriente, islamizado, prestes a fazer parte da União Européia, a Turquia. Pamuk toca em um tema tabu: o massacre de armênios e curdos em seu país e traz à tona a questão das diferenças étnicas e da intolerância. Então, por que escrever? Para quem escrever? Responde Pamuk (Folha de São Paulo, Ilustrada, E3, edição 14 de outubro 2006):
Os escritores escrevem para um leitor ideal, para as pessoas que amam, para eles mesmos ou para ninguém... Os escritores de hoje também escrevem para aqueles que os lêem... Não existe um leitor ideal, livre de toda a estreiteza mental e de todas as proibições sociais ou mitos nacionais, assim como não existe o romancista ideal. Mas a busca de um escritor pelo leitor ideal começa quando o romancista imagina que ele exista e passa a escrever livros o tendo em mente.

O ato de escrever é engajado ou desengajado, dependendo de que escrita se trate; há uma razão para se escrever quando o que se escreve é poesia; assim como há razões quando se trata de prosa; e em ambos os casos uma diferença é estabelecida, porque as linguagens não são as mesmas, ainda que a língua o seja, assim como os instrumentos, as palavras, também são as mesmas, mas funcionam diferentemente na prosa e na poesia e manejo de um estilo e o de outro depende também da razão existencial do que se faz.
O corpo estético estende todos os seus sentidos para captar o estar-no mundo e o ser-no-mundo e anunciar a sua forma de ver-o-mundo. A primeira operação é, portanto, de entendimento do que dever ser transmitido, a sua razão de ser.
Segundo Sartre, a poesia e a prosa se diferenciam no uso das palavras, já que na prosa as palavras são signos, enquanto que na poesia elas têm um outro significado, aqui são transparentes, enquanto que na prosa elas traduzem a realidade das coisas que representam, que nomeiam. Escrever sobre o real é aproximar-se ao máximo da realidade e representá-la através dos signos, das palavras, formulando o discurso que desvela algo. Para Heidegger (2002), o desencobrimento, levantar o véu que vela. Para Sartre, o desvelamento de algo que está oculto e que deve ser mostrado. O mesmo para Bachelard (1988), por trás das aparências algo oculto, uma latência que revela algo que propõe outros significados e relações para além daqueles que a máscara esconde e simultaneamente revela.
Pensemos em Aldous Huxley (1986, p 1), quando nos fala na arte e na realidade, mostrando que a realidade não faz sentido, não tem estilo, diferentemente da arte, mais especificamente da literatura. A realidade é o campo da prosa; a transcendência o da poesia. Se há alguma imbricação nos estilos, não pode haver predomínio de um sobre o outro, sob pena de não ser nem uma coisa nem outra.
Enquanto que a “existência” é, como nos ensinou Aldous Huxley, “sempre um infernal emaranhado de coisas”:

A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu aspecto bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas, e cada uma dessas coisas é simultaneamente Thurber e Miguel Ângelo, é ao mesmo tempo Mickey Spillane e Thomas Kempis. O critério da realidade é a sua congruência intrínseca.


Seguindo os passos de Heidegger (2003, p. 12), em seu estudo sobre Tralk, a poética se explicita a nos evocar e convocar para o sentido do mundo em toda sua expressão:
Alguns viandantes da errância
chegam até a porta por veredas escuras.
Da seiva fria da terra
Surge dourada a árvore dos dons.

Vamos ver certas diferenças entre a arte e a realidade. Para Sartre (1989, p. 40), “a obra de arte não tem uma finalidade; nisso estamos de acordo com Kant. Mas é porque ela é uma finalidade em si mesma...” “Kant crê que primeiro a obra existe de fato e só depois é vista. No entanto, a obra só existe quando a vemos; ela é primeiramente puro apelo, pura exigência de existir”.
A liberdade de escrever está ligada ao reconhecimento da liberdade dos outros. Sartre (ibid., p. 43) nos diz que “quando mais experimentamos a nossa liberdade mais reconhecemos a do outro; quanto mais ele exige de nós, mais exigimos dele”. E, por fim, se conclui que a arte é uma “cerimônia do dom e só o dom opera uma metamorfose” A generosidade, essa confiança de si, esse se dar à liberdade do outro, “assim a minha liberdade, ao se manifestar, desvenda a liberdade do outro” (p. 44).
Diante da produção literária, e artística em geral poderíamos levantar a questão da pulsão humana pela criação. Talvez respondêssemos com a simplicidade da resposta: somos humanos; e vamos mais adiante pensar na pergunta que também poderia ser inquietante: por que escrever?
O corpo estético estende todos os seus sentidos para captar o estar-no mundo e o ser-no-mundo e anunciar a sua forma de ver-o-mundo. A primeira operação é, portanto, de entendimento do que dever ser transmitido, a sua razão de ser. Eco nos dirá, mais adiante, o quanto o leitor é importante no diálogo com a obra; o quanto ele pode ser uma leitor empírico ou um leitor modelo. Os nossos sentidos convocados pela literatura, nos comunicam à razão e, então, sentimos a completude do que estamos fazendo quando lemos. Autores como Eco, Manguel e Calvino, passando por Moreiras (2001) e Morse (1990), falam da literatura com intimidade, como Antonio Cândido, sem, no entanto, essa passagem direta à realidade da vida.
Aldous Huxley, em diversos momentos em sua obra literária faz referência ao mundo ordenado da ficção, conquanto aquele da existência das pessoas “reais” na vida cotidiana apareceria como fragmentado. Diz ele em O gênio e a deusa: “A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu aspecto bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas”

Indicação de Leitura: Educação para uma nova sociedade


Autoria:. Gey Espinheira
Informe:. http://lattes.cnpq.br/2985787952341295

Pensar a educação é ir além das técnicas e mesmo das ciências. Já estou cansado – e acredito que muita gente mais – de pensar a educação como razão instrumental e atrelá-la ao mercado de trabalho, como se o destino do ser humano fosse o de transformar-se em trabalhador especializado, ou um faz-de-tudo, pau-para-toda-obra, ou ainda um generalista qualificado.
Nos últimos poucos anos as mudanças que se processaram na sociedade foram tão significativas que podemos dizer que ultrapassamos a linha da tradição e no inserimos no torvelinho da sociedade de mudanças e de descontinuidades que nos ultrapassam infinitamente, para usar aqui uma expressão dos paradoxos de Latour (1994).
Saímos, por exemplo, do paradigma da sociedade de economia para o de sociedade de tecnologia. O reconhecimento de que não foi o trabalho o responsável pelo aumento da produtividade e sim a tecnologia, o próprio trabalho passa a ser questionado como o lugar e o destino do ser humano, embora não se saiba o que fazer com este ser em estado de não-trabalho, como um ser improdutivo, intoleravelmente dependente.
Decididamente a educação vinculou-se ao trabalho e este se constituiu na melhor forma de controle social e de demarcação do espaço humano nas sociedades ocidentais. Freud, em seu Mal-estar da civilização, reconhece este enredo no qual os seres humanos foram levados a representar, e nos diz que “nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão fortemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana”. (1997 p. 29). Para Marx, o trabalho coletivo constrói a humanidade e para ser exercido exige conhecimento dos usos dos instrumentos, da tecnologia, e a sua forma de produzir, portanto, produz também a organização da sociedade e tudo mais que a caracteriza.
A educação é o meio para conhecer e agir na sociedade do trabalho; mas, estamos ainda na sociedade do trabalho? Já não é hora de pensar a educação para além do trabalho? Não terá o trabalho mudado? A estas questões não quero responder recorrendo à utopia da sociedade do ócio, mas a que se expande em modos de fazer, criar e inventar que, como na letra da música de Noel Rosa e Vadico: “fazer samba é um privilégio/ ninguém aprende samba no colégio”.
Não desejo entrar em considerações, portanto, sobre a sociedade do ócio ou qualquer coisa que o valha neste sentido, apenas dizer que a educação instrumental não encontrará campos largos de trabalho e emprego como se acreditava, ou como se alardeia hoje com a superoferta de cursos de toda natureza. Bourdieu (1996, p. 38 ss.) nos alertava que a educação, para além do conhecimento, concede diplomas, titula as pessoas, diferenciando-as socialmente e capacitando a acessos que outros, sem a titulação, estão impedidos. A educação joga um jogo social importante na distinção entre as pessoas e grupos sociais “pelo direito de usar um nome, um título; tem, portanto, outras funções para além do conhecer”.
O ser humano é um animal sem especialização como tal, por isso mesmo sua grande tarefa é a de constituir-se humanamente, isto é, de tornar-se o que não o é pela própria natureza; transcender-se em sua imanência. O processo para chegar a este objetivo é, inquestionavelmente, o educacional. Ninguém se humaniza sozinho, nos diz Berger (1972, p.114) “Uma pessoa não pode ser humana sozinha e, aparentemente, não pode apegar-se a qualquer identidade sem o amparo da sociedade”. Precisamos da sociedade para nos respaldar, e poderíamos dizer: precisamos da educação para nos fazer gente.
Quem somos nós no conjunto da sociedade? A que nos destinamos? Roland Corbisier (1978, p.59) citando Ortega e Gasset, nos diz que somos um projeto, que nos realizamos como projeto, já que não estamos acabados e programados.
Quando falamos em educação estamos pronunciando uma palavra enigmática, pois todos a entendem, mas nem só não sabemos do que estamos falando, nem os que nos ouvem sabem do que falamos. Rancière (1996) diria que este é um exemplo puro de desentendimento. E estamos nos desentendendo há muito tempo.
Quando falamos em paradoxo estamos nos referindo a algo que se apresenta como contrário, ou uma contraposição àquilo que julgamos ser o esperado. Assim, quando o professor se refere ao valor social da educação e, ao mesmo tempo, ao seu desprestígio no mercado de trabalho, está diante de um paradoxo e, certamente, também de um dilema e de um desafio, mas ainda em face de uma obviedade: o seu valor no mercado da educação de massa.
Por dilema podemos considerar a necessidade de uma decisão diante de alternativas que são opostas e cada uma delas insatisfatória, mas que é preciso chegar a uma conclusão ou a uma saída.
Pensemos, portanto, em paradoxos e depois nos dilemas que eles nos propõem:
1. O valor social da educação não é correspondido com a mesma ênfase nas relações de trabalho no campo educacional;
2. A baixa-estima do professor ao confessar seu baixo rendimento e suas precárias condições de trabalho expressa a sua fragilidade no âmbito do próprio campo educacional;
3. Ao comparar-se em dedicação e estudos a outros profissionais que obtêm sucesso sem o requerimento do empenho intelectual (artista, jogador de futebol, piloto de fórmula 1 etc.) põe em jogo a desvalorização social da educação para os próprios estudantes que são incentivados a “estudar para vencer na vida”;
4. A padronização da educação de massa é também a padronização (homogeneização) social, enquanto que o discurso da educação é o da distinção social, da instalação da competência para o desempenho competitivo na sociedade;
5. O predomínio da “razão instrumental” no processo educacional tende a anular a atenção à subjetividade do sujeito, tornando-o um ser indistinto diante de uma missão a que está obrigado a realizar sem ter a devida consciência do seu sentido e do seu significado;
6. A educação abstraída de significado torna-se mais um fardo do que algo reconhecido pelo estudante, também abs-traído, o ex-traido, para a realização de seu próprio projeto de formação social, de constituição de um ser repleto de possibilidades;
7. A má qualidade da educação leva ao desencanto e a freqüência à escola torna-se apenas uma obrigação social de “estar na escola”, o que descompromete o estudante com as relações necessárias decorrentes dos papéis em jogo;
8. Sobrecarregado e mal remunerado, o professor se desencanta e amesquinha seu próprio papel social;
9. O autoritarismo e a hipocrisia do campo educacional estabelece um chão de relações falsas, moralistas, que se torna movediço para todos os que se envolvem nesse campo;
10. A educação, embora absolutamente necessária, já não é condição – para a maioria – de ascensão social, garantia de trabalho, emprego e renda, nem de distinção social.

Diante desses paradoxos – que não se esgotam aqui – é preciso pensar nos dilemas que eles propõem e nos desafios que professores e estudantes têm pela frente para enfrentá-los se quiserem mudar o rumo da educação na proposição de uma nova sociedade. O principal dilema diz respeito ao fato de que só uma nova sociedade pode propor uma nova educação, e que a educação é o mecanismo, como processo, de construção dessa nova sociedade.

domingo, 4 de maio de 2008

Aproximações Violência e Pobreza nas Cidades Brasileiras

Violência nas Cidades Brasileiras

por:. Antonio Mateus de Carvalho Soares
informes:.http://lattes.cnpq.br/5592333054837843
ver site pessoal:. http://www.contatosociologico.crh.ufba.br/


A relação entre pobreza e violência merece um cuidado analítico[1], não é simplesmente uma relação de causa e efeito, não é imediata, se configurando em uma constelação de variáveis que se inter cruzam e se explicitam em um dado momento. A precipitação na análise pode fortalecer o estigma e o sensacionalismo de informações, que imbricam as duas situações em uma chave reflexiva imprópria. Estamos certos que há uma relação entre pobreza e violência, mas ela não existe isoladamente, e, em nenhum momento as duas situações podem ser consideradas como sinônimas.É bem verdade que os maiores índices de criminalidade nas cidades brasileiras se concentram nas periferias e subúrbios, onde se amontoam os maiores contingentes de pobres e desempregados. É também nestes espaços, consideradas como “espaços de exceção”, que as pessoas são mais vulnerabilizadas socialmente pela precarização urbana, exclusão social e falta de acesso à educação, à saúde, ao lazer e ao emprego digno. Embora, as maiores disposições de atos e ações violentas estejam circunscritas nestes espaços urbanos, ainda assim é ilegítima uma associação isolada entre pobreza e violência.Neste cenário precarizado pela ausência do poder estatal vidas são fragilizadas, e o “lugar pobre” ou “lugar da pobreza” guardam assim as variáveis necessárias para o investimento à transgressão, sendo considerados espaços por excelência da ilegalidade e da clandestinidade, lugares de maior acometimento à violência e ao crime[2] que invadem a cidade moderna. Em um esquema de complexo análise, a população destes “lugares de pobreza”, são investidas em uma perversa lógica de adversidades, monitorizada pelo capital, que separa, que exclui e que prende estes moradores em um paradoxo pólo: de potenciais praticantes ou de vítimas do crime.[1] Cf. (TELLES, 2006) [...] todo cuidado é pouco quando de trata de lidar com as proximidades da pobreza e violência, sobretudo nesses tempos em que a nossa velha e persistente, nunca superada, criminalização da pobreza vem sendo reatualizada sob formas renovadas, algumas sutis, outras nem tanto, na maior parte dos casos, aberta e declarada.[2] Cf. (SOARES, A. M. de C., p. 123, 2004) Nas primeiras acepções sobre violência e crime é importante evidenciar que existe uma linha tênue entre crime e violência, todo crime é uma violência, mas nem toda violência é um crime.

Cidade: Linguagens e Signos

por:. Antonio Mateus Soares
Site pessoal:. http://www.contatosociologico.crh.ufba.br/



A cidade é constituida por sinais e signos, que expressam a presença humana. As múlitplas linguagens traduzidas no ambiente cidatino, demonstra bem como a cidade é repleta de objetivações e subjetivações. Italo Calvino, em Cidades Invisíveis, deixa claro que a cidade é feita das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado. Ao descrever diversas cidades, o autor afirma que a cidade é constituida pelos imaginários particulares e coletivos. Para além de ser feia ou bonita, feliz ou infeliz, a cidade é produzida pelas formas, pelas figuras, pela imagem, e pela imaginação de seus moradores.Como uma constituição histórica, a cidade se fábrica a partir de ideologias, significações e produçòes homens que lhe dão um movimento contínuo, que nos leva a pensar que a cidade está sempre a se constituir. Pensando desta forma, e buscando maneiras de tentar narrar a cidade em suas linguagens particulares e coletivas, em 2002, fotografei três cidades brasileiras, à procura de seus sentidos, ou melhor a procura da memória dos meus sentidos. . Deste modo, veremos, a Sopreposição, fotografia tirada em março de 2002, no Subúrbio Ferroviário de Salvador-BA., também chamada pelo sociólogo Gey Espinheira de "Paisagem Bucólica", nominação que intitulou a descrição poética, feita por este sociólogo sobre a imagem:Paisagem Bucólica'- "Sobre o mar, o mar como um rio, o rio como a rua, as casas olhar o mar, o rio, a rua.Homens, mulheres e crianças são pate do mangue, vivem do que dali retiram na mariscagem cotidiana.Herdeiros do mar. não são marinheiros. É gente da terra sobre o mar nua em lama macilenta e mais tarde rio de novo de faz em rua, espelho a reproduzir casas, roupas lavadas em varais improvisados, essas coisas da vida íntima.Há uma hora em que só a paisagem conta, domina por completo a vida recolhida nas inveções do morar, vidas escondidas sobre o mar, sobre a lama, sobre o luar".
Uma outra fotografia que foi motivo de um texto magnífico do sociólogo Gey Espinheira, fiz em abril de 2002, no centro tradicional de Salvador-BA., ela se chama Tradição: "Do vazio, esqueleto ainda firme de um prédio na Cidade Baixa, em face de um outro ainda vivo, a imagem da 'memória da Sé', catedral derrubada em nome do progresso em 1933. O passado generoso do Comércio é hoje cenário de uma decadência progressiva e ameaçadora A velha Cidade Baixa contempla a 'memória da Sé' de um centro histórico revitalizado. O comércio pode integrar-se à renovação urbana e cultural, não apenas pela via do turismo, mas pela exploração de suas múltiplas potencialidades. Fechou-se um ciclo um outro se abre para resgatar o patrimônio ariquitetônico, artístico e cultural desta parte da cidade esclerosada, mas dotada de toda uma história e, sobretudo, de infra estrutura".

A exposição completa destas fotografias estão no site: http://www.contatosociologico.crh.ufba.br/, site pessoal de Antonio Mateus Soares, visite-o.

sábado, 3 de maio de 2008

TV : Sensacionalismo e Política (Jornal A tarde)




TV: Sensacionalismo e Política nos programas do meio dia

por:. Antonio Mateus de Carvalho Soares

[Artigo publicado no Jornal A tarde, fevereiro de 2008]

É lamentável as estratégias utilizadas para elevar a audiência nos programas jornalísticos da TV baiana, assuntos de grande relevância social são transmitidos de forma sarcástica e com apresentadores caricatos que vulgarizam o papel informativo dos tele-jornais e utilizam o sensacionalismo da miséria como foco da elevação da audiência, quando não distribuem prêmios em dinheiro, apresentam pessoas em situação de enfermidade e de múltiplas carências em uma total invasão “consentida” da vida intima, que capturam os telespectadores, sobretudo àqueles de menor grau de instrução, e os tornam cativos e defensores destes programas. A lógica de persuasão adotada por estes apresentadores é carismática e populista, os figurando como legítimos “pai dos pobres”.O discurso que legitima estes programas como agentes defensores da voz do povo é muito próximo do discurso da gestão da pobreza, que em sua essência não objetiva eliminá-la, mas gerencia a exclusão social através de dispositivos ideológicos que capturam a população carente e manipula seus desejos e escolhas. Durante o nazismo na Alemanha, Hitler utilizava técnicas de manipulação social, do tipo: “querem pão, não peçam a Deus, peçam a Hitler! Ao pedir a população recebia uma chuva de pães”, com está técnica disciplinadora, ele conseguia um exército de discípulos, que legitimaram o holocausto. A sofisticação de técnicas persuasivas similares, há algum tempo é praticada no tele-jornalismo baiano, e nos últimos meses vem exercendo força implacável, sobretudo em alguns jornais diários do meio dia. Que na luta desenfreada pela audiência, utiliza de forma humorística e ao mesmo tempo brutalizadora a estetização da condição social do pobre, que é focalizado como protagonista dos noticiários jornalísticos.O que nos espanta é a capacidade que esta programação possui em invadir milhares de residências diariamente e de manterem os picos de audiência durante meses consecutivos, com a mesma técnica e com o mesmo discurso. Seria um empobrecimento cultural dos telespectadores, que permitem a manipulação? Uma nova tendência contemporânea para o tele-jornalismo? Independente da resposta é crucial estarmos cientes que esta programação não possui a alteração da realidade social como meta, mas sim a elevação da audiência de sua emissora e a projeção de seus apresentadores em potenciais políticos “salvadores da pátria”. Estamos em ano de eleição municipal e o conteúdo destes programas já focalizam sublinearmente os candidatos que apóiam. Quando o próprio apresentador não se insinua candidato, o que pagar mais ganhará o apoio do programa. Tal situação gera medo e insegurança para àqueles que esperam alterações políticas, com as eleições de 2008, pois o poder de captura desta programação ideológica é perigoso.

Antonio Mateus de Carvalho SoaresMestre em Teoria e História USP, Sociólogo e professor universitárioE-mail:. amateus@ufba.br

Grupo de extermínio e violência em Salvador-BA

Grupo de extermínio e violência

Notas sobre matéria Correio da Bahia (capa) 05/03/2008
Texto: Antonio Mateus de Carvalho Soares

Excepcional e ao mesmo tempo aterrorizante a reportagem do Correio da Bahia, 02/03/2008, em relação aos grupos de extermínio e a juventude negra. Realmente, no Brasil, são os jovens que mais morrem e matam. Para se ter uma idéia, a última pesquisa da Unesco afirma que entre 1996 e 2006, os homicídios entre a faixa de 15 a 29 anos passaram de 13.186 para 17.312, um número elevadíssimo.Salvador ocupa a 4ª posição nacional em número de homicídios envolvendo jovens negros, situação que demonstra uma total falência da segurança pública e de políticas focalizadas para estes jovens, sobretudo aqueles que residem nos bairros periféricos e esquecidos pelo poder público, a exemplo dos bairros do subúrbio ferroviário, e outros como São Cristóvão, Mata Escura e Nordeste de Amaralina, que, mesmo se localizando em diferentes áreas geográficas da cidade, possuem taxas similares de criminalidade.O perfil de potenciais jovens violentados – negro, pobre e com baixa escolaridade, como evidencia a reportagem –, parece determinista, mas, infelizmente, é realístico, pois este é o perfil da vulnerabilidade juvenil em Salvador.Neste contexto, é importante que o estado e a Secretaria de Segurança Pública saiam da inoperância e reorientem suas estratégias de combate à violência contra a juventude. A lógica do “vigiar e punir” – câmera, armamento pesado e catras – não têm efeito imediato, nem em longo prazo.É necessária uma política de prevenção contínua, simultânea a programas de geração de renda que privilegiem a inserção desses jovens, sobretudo os negros, no mercado de trabalho. Também é imprescindível o empoderamento e a legitimação da instituição escolar: a escola como um ambiente atrativo de humanização e promotor de diálogos que contemplem os direitos humanos, possibilitando novas alternativas de existência social para estes jovens em situação de risco.


Antonio Mateus de Carvalho Soares
Sociólogo
Salvador – BA

Sociólogo Antonio Mateus Soares fala sobre o perfil dos assinados por grupo de extermínio em Salvador-BA!!!

JORNAL CORREIO DA BAHIA
Data:02/03/2008
09:10:00
Jornalista:Pablo Reis
Participação: Antonio Mateus de Carvalho Soares

Jovens negros são as vítimas preferenciais de grupos de extermínio


Negro, morador da periferia, desempregado, com escolaridade até o ensino fundamental, entre 15 e 29 anos, com facilidade para reproduzir gírias e geralmente alguma tatuagem no corpo: marcado para morrer. O perfil de vítimas de grupos de extermínio na Bahia coloca jovens negros de famílias de baixa renda, residentes em bairros populares, como alvos preferenciais de justiceiros, que incorporam o papel de polícia, juiz, júri e carrasco. Os levantamentos feitos por entidades de defesa dos direitos humanos e especialistas em segurança pública desenham a quase totalidade dos mortos em ações de esquadrões da morte com os pincéis da discriminação racial e social. O Fórum Comunitário de Combate à Violência, entidade que reúne ONGs, associações de moradores, representantes da polícia e pesquisadores acadêmicos, apresenta números alarmantes sobre a disparidade racial nas execuções. Os únicos dados disponíveis são de 2004, com base nos registros do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, mas o quadro deve permanecer inalterado. Dos 706 mortos em homicídios com idades entre 15 e 29 anos, 699 eram negros e sete brancos. As percentagens em relação ao número de cem mil de cada etnia é de 50,1 para os negros e 1,7 para os brancos. A aritmética do terror coloca 30 vezes mais chances de um jovem negro ser vítima de um grupo de extermínio do que um branco nas mesmas condições. Ser portador dessas características é, para o sociólogo e pesquisador da violência urbana Antônio Mateus de Carvalho Soares, como ostentar uma "marca de Caim", uma referência ao personagem bíblico sinalizado com o estigma de um grande malfeitor. Também estes jovens, na visão dos justiceiros, estão maculados pelo estereótipo de um delinqüente em potencial. "Os matadores fazem uma radiografia: se é preto, pobre, tem trejeitos, cabelo pintado, fala gíria, ou é ou vai ser marginal. A solução deles é eliminar", analisa Carvalho Soares, refletindo sobre a lógica dos grupos. Vítima - Ao preencher algumas características desse estereótipo, o adolescente deixa de ser um cidadão para se tornar uma espécie de alvo preferencial. Em 7 de fevereiro de 2003, Nailton Manoel da Conceição, um negro então com 17 anos, a três dias de completar um ano trabalhando em uma lanchonete da Pituba, foi assassinado com tiros de pistola e metralhadora por policiais que depois justificaram terem "confundido a vítima com um marginal". Ele estava deitado no quarto, na casa do bairro de Pero Vaz, quando foi surpreendido por agentes que invadiram atirando, numa ação descrita como a caça a um bandido perigoso da região. Dois policiais dos quatro participantes tiveram as exonerações publicadas no Diário Oficial do Estado em 3 de fevereiro de 2006, depois de um inquérito que mostrou a sucessão de erros e a forma precipitada como atiraram apenas pela presunção de culpa baseada no tipo físico. Eles podem ir a júri popular até o meio deste ano. "Quem mora em periferia sempre sofre mais. Se fosse um menino branco da Pituba ou da Graça, eles jamais fariam isso", lamenta o irmão mais velho de Nailton, Nilton Esperança Conceição, um pouco envergonhado pelas lágrimas por relembrar o episódio. "Consegui provar que meu irmão não tinha vínculo com a malandragem, mas isso não vai trazê-lo de volta". *** Alvos fáceis de matadores Na mira dos "matadores de aluguel", jamais estão os líderes de quadrilha, acusados de grandes crimes, chefes de bocas de fumo, assaltantes perigosos. As armas são apontadas quase sempre para corpos de primários, autores de furtos ou simplesmente candidatos a tal, de acordo com a escala de projeção de criminalidade elaborada pelos exterminadores. Terminam virando reforço de estatística nomes como Ricardo Matos dos Santos, 21 anos, Robson de Souza Pinho, 19 anos, Clodoaldo Souza, 22 anos, Alexandre Macedo Fraga, 17 anos. Os corpos alvejados durante ações noturnas passam a estampar as páginas de jornais em uma ilustração da barbárie. Os mortos sem sepultura, cadáveres exibidos na comunidade e nas publicações, funcionam pela lógica do exemplo. "Corpos expostos, simbolicamente sem sepultura, operam como uma advertência de comerciantes e exterminadores. São exemplos extremos do destino que poderão vir a ter outros jovens que fizerem carreira de reincidência no crime", explica o livro Sociabilidade e violência, coordenado pelo sociólogo Gey Espinheira, que faz um balanço da violência no subúrbio de Salvador. “Esses grupos elegem um alvo e partem para o que consideram assepsia social, ou seja, tirar de ação o que eles consideram como um possível delinqüente de circulação", explica a promotora pública Ana Rita Cerqueira Nascimento, que integra a equipe do Ministério Público responsável pela atuação contra a criminalidade organizada. "São pessoas que nem precisam ser remuneradas, às vezes agem por convicção de estar fazendo o bem". A promotora atuava na comarca de Santo Antônio de Jesus quando denunciou cinco policiais militares por integrar um grupo de extermínio na região. Dois deles foram condenados à prisão, mas terminaram soltos por habeas-corpus. O caso teve repercussão há cinco anos, principalmente por causa da visita da relatora da Organização das Nações Unidas para execuções sumárias, Asma Jahangir. Algumas entidades calculam em mais de 80 grupos de extermínio em ação no estado. No ano passado, o então delegado-chefe da Secretaria de Segurança Pública da Bahia, João Laranjeira, avisou que tinham sido identificadas oito agremiações de matadores de aluguel. Nenhuma foi desarticulada. *** 'Antes eles do que um pai de família' Uma voz compatível com a de um homem entre 30 e 45 anos, respostas ora graves, ora sarcásticas, e a certeza de que ele está fazendo um bem para a sociedade. Durante pouco mais de dez minutos, um homem que assumiu a condição de integrante de um grupo de extermínio aceitou falar com a reportagem do Correio da Bahia, por telefone, depois de contatos com interlocutores em comum. Jack – como pediu para ser chamado – ligou para o celular do repórter de um número identificado como "restrito". Ele disse que trabalha como segurança de um mercadinho de bairro e que "já derrubou quatro vagabundos", em três anos. Os principais trechos da conversa estão a seguir: CORREIO DA BAHIA – O senhor faz parte de grupo de extermínio? Jack – Junto com alguns colegas, eu já "derrubei uns vagabundos" que faziam arruaça no bairro. CB – Que tipo de arruaça? Jack – Roubos, avião, até tentativa de estupro. CB – Qual o perfil dos integrantes do grupo? Jack – É misto. Tem policial e também gente comum. Um já foi polícia e agora trabalha como segurança. Outros dois só faziam acompanhar, não são mizeravão. CB – Vocês sempre agem em quatro? Jack – Às vezes, depende do lugar, da bocada, da baixada. Se for uma boca quente, tem que ir quatro ou cinco. Se for um lugar mais tranqüilo, até dois dão conta do trabalho. Porque já tem alguém na área que indica o local certo de encontrar o elemento. Aí só precisa colocar o brucutu e descer. CB – O senhor ganha dinheiro com isso? Jack – Não. Eu sou contra ganhar dinheiro com isso. Acho que fazer justiça com as próprias mãos não combina com ser remunerado por isso. Somos pessoas de bem, sem maldade e sem perversidade. A gente faz o que a polícia não pode fazer pela lei. Somos pessoas que querem deixar um mundo melhor para nossos filhos. CB – Quais foram suas vítimas? Jack – Uns vagabundos que queriam engrossar o pescoço na área. Um já tinha arrombado duas casas e outro "fez" uma padaria e uma farmácia. São pessoas que já têm passagem pela polícia e que já entram na delegacia dando risada, porque sabem que vão ser soltos. CB – O senhor acha correto fazer justiça com as próprias mãos? Jack – Se alguém me faz puxar o ferro, eu tenho que usar. Se eu der um mole, minha casa cai. Eu poderia matar alguém para me proteger ou para proteger outra pessoa. Pergunte lá na rua sobre os caras que caíram e todo mundo vai dizer que já foi tarde, tudo sacizeiro. Antes eles do que um pai de família, você não acha? CB – O que o senhor acha da violência? Jack – A violência é o pior problema de hoje. A violência e a corrupção na política. Fonte: Jornal Correio da Bahia