terça-feira, 1 de julho de 2008

GESTOS E SONS NAS RUAS DO COMÉRCIO DE SALVADOR-BA



Por:. Patricia Smith Galvão

Analista Universitária da UNEB; Graduada em Comunicação Social; Especialista em Gestão Pública Governamental; Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social. Atua também enquanto membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Cidade e Democracia: sociabilidades, representações e movimentos sociais” – Centro de Recursos Humanos – CRH/UFBA.


Amolar: gesto preciso, inumeramente repetido. Pele morna a laçar, envolver e manipular o metal frio – já sem talhe – a afiar-se outra vez. Ir contra a natureza das coisas modernas, cujo descarte rápido, impiedoso - traduzido pelas poucas chances dadas à utilidade plena e à duração - é regra predominante.
“Mas a palavra ‘gesto’ aqui é enganosa. Deveríamos encontrar um termo que englobasse tanto os movimentos do corpo como os do espírito” (GIARD, 1996: 269). São, destarte, gestos aprendidos de tanto que foram observados e repetidos, realizados insistentemente, até que se pudesse executar a tarefa com satisfação. É desta reprodução quase indefinida que nos conta o amolador: “... daí depois de um certo tempo eu comecei a praticar em casa. Pegava uns alicates velhos, ia praticando. ... depois eu vim pra aqui e comecei a amolar tesoura e fui desenvolvendo, com muita dificuldade, né? (ele sorri) ..., [...]. Pensei em desistir muitas vezes... Aí depois, com o tempo vai perdendo o medo...”.
Na narrativa acima, palavras do Sr. Emerson de Almeida que trabalha há onze anos na profissão de cutelaria. Para a oferta do serviço, localiza-se no bairro do Comércio da cidade de Salvador (Ba), próximo à Praça da Inglaterra. Emerson é filho do Sr. Tiotônio, amolador já aposentado, conhecido como o “pioneiro” daquele ponto. Seu Tiotônio teve 11 filhos: cinco mulheres e seis homens. Dos seus seis filhos homens, quatro seguiram a profissão do pai. Naquele mesmo lugar, além de Emerson, há mais dois dos seus irmãos, um tio e outros dois amoladores que não fazem parte da sua família. Dispõem-se sentados sob a marquise do antigo prédio dos Correios, em assentos de madeira construídos por eles mesmos, nos quais foram anexados esmeris - um pequeno motor que faz girar com força e rapidez a pedra de polimento - e uma gaveta onde guardam os demais instrumentos de trabalho.
Tem-se, portanto, na fala do amolador, a descrição de gestos que em sua natureza demonstram o exercício e a experiência incorporados nas “formas do fazer”, que representam um modo de ser, guardando memórias e histórias de resistência nem sempre reconhecidas. Medo?, disse ele. Medo de que?, pode-se perscrutar. E o que se revela não é a causa do medo, mas o que dele deriva, como a obstinação a favor de uma permanência que se pode pensar em sentido amplo e em perspectivas variadas, implicando em possibilidades de reelaboração do que está posto, produzido. Produtos e métodos que não deixaram de ser compostos e recompostos pelas novidades, tantas vezes influenciados pelas inovações - máquinas, utensílios, idéias recém surgidas - acomodadas em superposições e incorporadas pelo fazer antigo que, ao seu turno, como por um capricho, atravessa os dias e a horas do passado, mantendo-se no tempo presente. Inventos estes que economizam os gestos, as práticas, os sons... e que guardam em si perigo iminente de virem a economizar também, ou mesmo diluir, o indivíduo que realiza o serviço ou ação.
Por isso também não são suficientes o gesto de amolar ou as acomodações do corpo. Faz-se necessário um conjunto de disposições para além do aprendizado técnico, perito, bem como o desempenhar de uma atuação específica visando manter-se ali e realizar a atividade. É preciso construir ou adquirir os instrumentos de amolação, conquistar a sua clientela, fazer um serviço bem feito, ao gosto do freguês, com preço competitivo: “Eu mesmo sou assim, quando eu vou num local que sou bem atendido, que a pessoa faz o melhor, não usa de engano, eu volto, mas a partir do momento que eu vejo um engano... pra mim já perdeu a credibilidade; aí já perdeu, aí já caio fora. Eu creio que seja isso, né? ...” conforme narra o senhor Emerson. Ao final, volta à questão sobre a oferta do seu serviço e conclui: “Dois e cinqüenta, ... quer dizer..., pra elas... é caro, mas pra elas é uma coisa que tem utilidade, pra que?, faz várias unhas, mas, também, pô, você pagar dois e cinqüenta e não sair satisfeita que o seu material não está bom, às vezes até danificar, pesa, né? Pesa.”
Ademais da atuação, conta o reconhecimento. O fazer, embora imprescindível, é insuficiente. É preciso estar visto, identificado, considerado pelos demais enquanto conhecedor do que realiza. Circunstâncias para as quais o que vale é o olhar e o aceite do outro: “há 25 anos eu amolo meus alicates e os de minhas clientes aqui. Primeiro com o velho pai dele, depois com o irmão dele e agora com ele” – afirma dona Matildes, manicure de profissão e cliente antiga dos amoladores, referindo-se a Emerson. Dizia também da qualidade daquele serviço e da sua garantia: “(...) eu não amolo com outras pessoas, porque eu já tenho as pessoas certas, que eu já sei o jeito de amolar e se eu sair daqui e for pras bandas da Calçada..., e se aí não amola bem? Aí eu perdi meu tempo, perdi meu dinheiro... Então eu venho praqui, pra ele ou pro irmão dele...”.
Nesta mesma conversa a antiga cliente advertia sobre a dificuldade em dominar a arte da cutelaria: “não é só ter os instrumentos não..., pra saber fazer leva tempo, precisa de experiência”, numa afirmativa logo corroborada pelo próprio Emerson, também preocupado em explicar o seu temor quanto a não indicar o trabalho de outro amolador a um cliente seu, sentindo-se responsável pela qualidade do serviço e com a satisfação dos seus fregueses.
Para um bom atendimento é preciso realizar o cálculo sobre o andamento do serviço a ser prestado, período entre o acolhimento das solicitações de um e outro cliente, o que requer perícia de quem realiza o ofício posto que a qualidade do trabalho sofre implicações das mínimas frações de horas que os fregueses dispõem àquela demanda. Solicita também, e, portanto, certa compreensão, a partir de critérios subjetivos, da forma que o outro compromete o seu próprio tempo. Há ainda aqueles que preferem entregar seus alicates para pegarem depois, encomendando o reparo no intuito de aproveitarem os minutos na execução de demais atividades ou no suprimento de demandas outras a serem providas por serviços ou produtos oferecidos em abundância nas ruas do Comércio.

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