terça-feira, 1 de julho de 2008

A invenção da realidade: Loucura e Mendicância

Por:. Vitor Pablo Jacobina

O triunfo da morte - Pieter Breugel


Vitor Pablo Jacobina - possui graduação em Medicina pela Universidade Federal da Bahia (2000). Atualmente é professor substituto do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Psiquiatria, atuando principalmente nos seguintes temas: neurocognição bipolar, psicofarmacologia, fluoxetina, tricotilomania, epidemiologia e agranulocitose.

Só podemos ver o mundo através dos nossos olhos. Esta frase óbvia ilustra bem as convicções apaixonadas e as animosidades que perpassam a troca de farpa entre o Movimento Anti-manicomial Brasileiro e setores da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). O primeiro informa que o excesso de poder de clausura e intervenção sobre o sujeito que é dado ao psiquiatra se corrompe em sutil instrumento de opressão das individualidades. Principalmente das individualidades mais excêntricas e frágeis. Já alguns setores da ABP acusam o Movimento Anti-manicomial de propagar no SUS uma desospitalização brusca, anti-técnica, ideológica e produtoras de mendigos.

Em Salvador-Bahia: um lado denuncia as mortes e violências praticadas dentro dos manicômios públicos. O outro lado denuncia as mortes e violências acontecidas após a redução notável e brusca dos leitos psiquiátricos associada à abertura de número insuficiente de CAPS ineficazes. Enquanto debate-se uma saúde mental ideal e utópica na medida do possível, algumas importantes variáveis sociais, científicas e culturais parecem estar sendo esquecidas. A Psiquiatria parece que ainda levará décadas até abolir a necessidade de internamento compulsório em diversos quadros psiquiátricos agudos. No Brasil de 2008, talvez mais que em outros lugares, a elite se torna mais autista e cosmopolita, a classe média se proletariza, os proletários são pressionados a tornarem-se máquinas de trabalho progressivamente mais eficientes, e montanhas de “lixo humano” “indizível” continuam a ser produzidas. [Esquecer-se destas variáveis caotizantes no cálculo da redução de danos aos sujeitos da civilização é mostra de imprudência (com o real) e desumanidade].

Podemos exemplificar facilmente tal conjuntura: Caso um esquizofrênico (negro de classe D ou E) cronicamente sintomático e mal tratado mata seu pai com um golpe de capoeira, a família e a juíza mais próxima não terão mais paciência para cuidá-lo, nem existirá estrutura estatal para acolhê-lo com dignidade por prazo suficiente. Então, utilizarão um papel onde estará escrito o código da doença para transferí-lo do presídio ao manicômio judiciário. Dentro dos muros do manicômio será alimentado e tosado para evitar a infestação de piolhos, e será menos espancado que nas ruas, onde teria uma sobrevida menor e pior.

É uma situação realmente animalesca. Aliás, historicamente, os homens de bolsos e juízos mais fracos são mais facilmente animalizados que outros. Entre tanta sutileza, também aspiro ao ideal de uma saúde mental, mas me satisfaço com o menor dano possível no instante agora.

Mas aí dirão: “É melhor acabar vez com todo este antigo sistema desumano para induzir a formação de algum outro que fatalmente será melhor que este”. É, realmente, pimenta nos olhos dos outros é refresco. Tal frase, dita por um colega médico, é bastante característica do conceito de Brasil nas palavras de Darcy Ribeiro: “Máquina de desgastar gente”.

Os CAPSs têm sido responsáveis por um melhor acesso aos serviços de assistência à saúde mental, principalmente em alguns rincões do Brasil, onde a maioria dos psiquiatras, por serem criaturas eminentemente metropolitanas e litorâneas, tão facilmente não se dispõem a ir morar ou clinicar.

Os psiquiatras criticam a postura ideológica e passional dos setores mais radicais do Movimento Anti-manicomial, principalmente em questões óbvias como o ECT (Eletroconvulsoterapia: procedimento caro e praticamente inócuo que salva vidas e subjetividades), mas não aproveitam seu prestígio para denunciar situações escabrosas, tais como o fato de clinicas psiquiátricas conveniadas ao SUS receberem menos recursos financeiros caso realizem em suas instalações o salvador procedimento de Eletroconvulsoterapia. O que faz com que apenas o setor privado tenha acesso a tão caro e eficiente procedimento. Legítima prova de que ideologias burras (pouco esclarecidas) podem promover a exclusão e os maus-tratos daqueles que se propõem defender.

Com muito ou nenhum embasamento científico cada lado reinventa o real. O real de sua utopia. Quero crer que haja apenas interesses políticos excusos por trás de tanta ineficácia, porque padecer de burrice é um luxo que técnicos da área de saúde mental não se podem permitir.

De resto, gostaria de destacar que não sou o pensador mais liberto para analisar tais questões, nem o mais sábio, nem o mais poderoso, muito menos o mais verdadeiro. Mas permitam-me insistir no pedido por uma menor distorção da realidade periclitante dos portadores de transtornos mentais pelos técnicos a seu serviço. Afinal de contas, não podemos nos permitir a aventura de sermos loucos voluntários quando estamos administrando a vida de outras pessoas.

Só existe uma Psiquiatria, a especialidade médica, e ao lado dela diversas outras disciplinas e escolas de psicologia para abordar o sofrimento e alterações comportamentais dos indivíduos. Pois que os indivíduos são livros únicos, não existe um indivíduo igual a outro. Há mais de dois milênios repetimos Hipócrates: “Cada caso é um caso”. Não se pode queixar que nós médicos generalizamos demais. Em Psiquiatria menos ainda. Parafraseando o professor Del Nero: Cada sujeito-paciente é um livro que deve ser lido por nós. Nós, psiquiatras, somos “consertadores” de livros especializados em papel, tinta, edição, gramática, biografias, estéticas literárias, figuras de linguagem. Tentamos reparar livros-sujeitos para que sofram menos, para que funcionem melhor, e para que sejam mais eficientes na expressão de suas mensagens de vida.
Por que a ABP se ausenta de exercer seu papel pedagógico? Ela sabe que o estado brasileiro, como instrumento exemplar, ao invés de apenas fechar hospícios sucateados e desumanos, deveria também abrir leitos psiquiátricos suficientes nos hospitais gerais do SUS, deveria fazer constar psiquiatras e setores de psiquiatria nas emergências dos hospitais gerais do SUS. Pois que a Psiquiatria faz parte da medicina e, como todo o resto da medicina, ainda não evoluiu o suficiente para deixar de requerer o internamento nas fases mais agudas das doenças. Por que a ABP se cala e não brada por todos os lados que as escolas de medicina (nem todas) precisam ensinar aos seus médicos a não ressuscitar a dicotomia cartesiana: corpo-mente?

Permitam que eu denuncie, então. Nós médicos ainda padecemos do cacoete cartesiano de três séculos atrás, “acreditamos” (compartimentalizamos) que existem problemas mentais e problemas orgânicos (biológicos). [Aliás, toda a medicina se encontra atualmente compartimentalizada: os olhos não se comunicam com os rins, o coração não fala mais com o fígado, as articulações odeiam os ossos e o cérebro só conversa com a mente de vez em quando, e olhe lá!] Por isso sempre repetimos a ingênua questão: “Este paciente sofre de um problema mental ou físico?”. E nos alarmamos nas emergências clínicas: “Aqui não tratamos problemas mentais!”. E nos alarmamos nos hospícios: “Aqui não temos estrutura para lidar com quadros clínicos orgânicos moderados ou graves, como insuficiência cardíaca descompensada!”. Então fica uma pergunta: E um esquizofrênico descompensado com insuficiência cardíaca descompensada será atendido onde? No Hospital das Clínicas da USP? E um histriônico dissociado e com asma grave? E um paciente que apresente ao mesmo tempo uma depressão psicótica e uma insuficiência renal aguda, morrerá por causa de Decartes? Não existe corpo apartado de mente, existem indivíduos que podem padecer de transtornos e doenças.


A imaginação salta quando me vejo lidar com temas tão apaixonantes. E logo me vem alguma narrativa dramática que exemplifique realidades estéticas como essa da loucura mendicante de homens transformados em refugiados urbanos.

Lembro da senhora de setenta e cinco anos, Carina Bispo, mãe do gigantesco esquizofrênico ex-engenheiro químico, Glisérgio Bispo. Eles pertencem a uma classe média mais modesta e portadora de casa própria. A primeira pensionista e o segundo aposentado por invalidez. Antigamente, quando existiam hospícios e quando Glisérgio entrava em crise, Dona Carina contratava dois entregadores de água mineral e levava seu filho para internar por umas quatro semanas. Todo ano, uma ou duas vezes ele entrava em crise.

Mas agora que quase todos os manicômios fecharam, ficou difícil internar Glisérgio. Quando está em crise, ele pensa que sua mãe foi substituída por uma senhora muito parecida que lhe persegue para lhe envenenar, de modo que herdará a casa e ninguém desconfiará de nada. Fica agressivo com Carina. Esta preparou-lhe um quarto forte com grades em sua casa onde internaria Glisérgio por conta própria, mas logo se viu ameaçada pelos evangélicos e pelas assistentes sociais do CAPs de seu bairro: “Se o prender aí nós a denunciaremos ao ministério público!”. Então mais nada restou a Dona Carina, senão expulsar Glisérgio de sua casa com seu exército de entregadores de água mineral. E gradeou a entrada da casa, e ficava lá de cima da varanda conversando com ele: “Se você tomar o remédio ficará bom dessas idéias, aí eu te deixo entrar aqui. Tome o remédio meu filho!”

Mas Glisérgio, do vestíbulo gritava: “Sua assassina filha da puta! Você quer me envenenar! Você matou minha mãe. Você não é Dona Carina. Você se apropriou dessa casa nossa!”. Dona Carina, segura atrás de suas grades, estica o braço para ofertar alimentos e medicamentos ao pornofônico Glisérgio mendicante, que passou a habitar a calçada que fica em frente a sua própria casa. Dona Carina até mandou estender um toldo de sua casa por sobre a calçada para tentar protegê-lo da chuva e do sol. Mas quando este permanece muito tempo a gritar em frente a sua casa, Dona Carina, para não ficar tão falada na vizinhança, enche um balde de água gelada, pinga uma gotinhas de alfazema, e joga em cima de Glisérgio.
















GESTOS E SONS NAS RUAS DO COMÉRCIO DE SALVADOR-BA



Por:. Patricia Smith Galvão

Analista Universitária da UNEB; Graduada em Comunicação Social; Especialista em Gestão Pública Governamental; Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social. Atua também enquanto membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Cidade e Democracia: sociabilidades, representações e movimentos sociais” – Centro de Recursos Humanos – CRH/UFBA.


Amolar: gesto preciso, inumeramente repetido. Pele morna a laçar, envolver e manipular o metal frio – já sem talhe – a afiar-se outra vez. Ir contra a natureza das coisas modernas, cujo descarte rápido, impiedoso - traduzido pelas poucas chances dadas à utilidade plena e à duração - é regra predominante.
“Mas a palavra ‘gesto’ aqui é enganosa. Deveríamos encontrar um termo que englobasse tanto os movimentos do corpo como os do espírito” (GIARD, 1996: 269). São, destarte, gestos aprendidos de tanto que foram observados e repetidos, realizados insistentemente, até que se pudesse executar a tarefa com satisfação. É desta reprodução quase indefinida que nos conta o amolador: “... daí depois de um certo tempo eu comecei a praticar em casa. Pegava uns alicates velhos, ia praticando. ... depois eu vim pra aqui e comecei a amolar tesoura e fui desenvolvendo, com muita dificuldade, né? (ele sorri) ..., [...]. Pensei em desistir muitas vezes... Aí depois, com o tempo vai perdendo o medo...”.
Na narrativa acima, palavras do Sr. Emerson de Almeida que trabalha há onze anos na profissão de cutelaria. Para a oferta do serviço, localiza-se no bairro do Comércio da cidade de Salvador (Ba), próximo à Praça da Inglaterra. Emerson é filho do Sr. Tiotônio, amolador já aposentado, conhecido como o “pioneiro” daquele ponto. Seu Tiotônio teve 11 filhos: cinco mulheres e seis homens. Dos seus seis filhos homens, quatro seguiram a profissão do pai. Naquele mesmo lugar, além de Emerson, há mais dois dos seus irmãos, um tio e outros dois amoladores que não fazem parte da sua família. Dispõem-se sentados sob a marquise do antigo prédio dos Correios, em assentos de madeira construídos por eles mesmos, nos quais foram anexados esmeris - um pequeno motor que faz girar com força e rapidez a pedra de polimento - e uma gaveta onde guardam os demais instrumentos de trabalho.
Tem-se, portanto, na fala do amolador, a descrição de gestos que em sua natureza demonstram o exercício e a experiência incorporados nas “formas do fazer”, que representam um modo de ser, guardando memórias e histórias de resistência nem sempre reconhecidas. Medo?, disse ele. Medo de que?, pode-se perscrutar. E o que se revela não é a causa do medo, mas o que dele deriva, como a obstinação a favor de uma permanência que se pode pensar em sentido amplo e em perspectivas variadas, implicando em possibilidades de reelaboração do que está posto, produzido. Produtos e métodos que não deixaram de ser compostos e recompostos pelas novidades, tantas vezes influenciados pelas inovações - máquinas, utensílios, idéias recém surgidas - acomodadas em superposições e incorporadas pelo fazer antigo que, ao seu turno, como por um capricho, atravessa os dias e a horas do passado, mantendo-se no tempo presente. Inventos estes que economizam os gestos, as práticas, os sons... e que guardam em si perigo iminente de virem a economizar também, ou mesmo diluir, o indivíduo que realiza o serviço ou ação.
Por isso também não são suficientes o gesto de amolar ou as acomodações do corpo. Faz-se necessário um conjunto de disposições para além do aprendizado técnico, perito, bem como o desempenhar de uma atuação específica visando manter-se ali e realizar a atividade. É preciso construir ou adquirir os instrumentos de amolação, conquistar a sua clientela, fazer um serviço bem feito, ao gosto do freguês, com preço competitivo: “Eu mesmo sou assim, quando eu vou num local que sou bem atendido, que a pessoa faz o melhor, não usa de engano, eu volto, mas a partir do momento que eu vejo um engano... pra mim já perdeu a credibilidade; aí já perdeu, aí já caio fora. Eu creio que seja isso, né? ...” conforme narra o senhor Emerson. Ao final, volta à questão sobre a oferta do seu serviço e conclui: “Dois e cinqüenta, ... quer dizer..., pra elas... é caro, mas pra elas é uma coisa que tem utilidade, pra que?, faz várias unhas, mas, também, pô, você pagar dois e cinqüenta e não sair satisfeita que o seu material não está bom, às vezes até danificar, pesa, né? Pesa.”
Ademais da atuação, conta o reconhecimento. O fazer, embora imprescindível, é insuficiente. É preciso estar visto, identificado, considerado pelos demais enquanto conhecedor do que realiza. Circunstâncias para as quais o que vale é o olhar e o aceite do outro: “há 25 anos eu amolo meus alicates e os de minhas clientes aqui. Primeiro com o velho pai dele, depois com o irmão dele e agora com ele” – afirma dona Matildes, manicure de profissão e cliente antiga dos amoladores, referindo-se a Emerson. Dizia também da qualidade daquele serviço e da sua garantia: “(...) eu não amolo com outras pessoas, porque eu já tenho as pessoas certas, que eu já sei o jeito de amolar e se eu sair daqui e for pras bandas da Calçada..., e se aí não amola bem? Aí eu perdi meu tempo, perdi meu dinheiro... Então eu venho praqui, pra ele ou pro irmão dele...”.
Nesta mesma conversa a antiga cliente advertia sobre a dificuldade em dominar a arte da cutelaria: “não é só ter os instrumentos não..., pra saber fazer leva tempo, precisa de experiência”, numa afirmativa logo corroborada pelo próprio Emerson, também preocupado em explicar o seu temor quanto a não indicar o trabalho de outro amolador a um cliente seu, sentindo-se responsável pela qualidade do serviço e com a satisfação dos seus fregueses.
Para um bom atendimento é preciso realizar o cálculo sobre o andamento do serviço a ser prestado, período entre o acolhimento das solicitações de um e outro cliente, o que requer perícia de quem realiza o ofício posto que a qualidade do trabalho sofre implicações das mínimas frações de horas que os fregueses dispõem àquela demanda. Solicita também, e, portanto, certa compreensão, a partir de critérios subjetivos, da forma que o outro compromete o seu próprio tempo. Há ainda aqueles que preferem entregar seus alicates para pegarem depois, encomendando o reparo no intuito de aproveitarem os minutos na execução de demais atividades ou no suprimento de demandas outras a serem providas por serviços ou produtos oferecidos em abundância nas ruas do Comércio.